Já os nossos corpos mergulharam juntos por entre esta selva de luz roubada, em movimentos perfeitos, em voos alados, numa dança sem fim no centro de um palco sem público. Deixar correr agora cada gota na janela baça... Que desperdicio!

segunda-feira, maio 24, 2004

O azul do céu colado aos teus pés

Gosto de me deitar na relva fresca e húmida do sol que lhe escorre, deliciado com a forma das núvens que percorrem o azul do céu. Quando não vemos nada senão um enorme oceano de luz, tudo parece desaparecer, todo o mundo, todo o mal, todo o bem, tudo! Fiquei eu, aqui, deitado na relva verde que me vai picando de vez em quando a pele amaciada pelos torrões de luar, sozinho à espera que se deitem no meu peito...

Não consigo decidir quando terminou a minha infância, não sei se foi um momento em que acordei de um sonho qualquer que não me lembro de ser maravilhoso, talvez tenha sido quando senti amor, não sei, de certa forma sempre o senti, por todos aqueles que sempre me agarraram quando precisei, pela minha tia Nela que me abraçava quando o meu avô me obrigava a comer a sopa até ao fim, pela a minha avó que me levava a comida à cama quando delirava de calor numa febre que nunca terminava, do meu avô que me obrigava a ver futebol... Coitado, nunca gostei de futebol.
Gostava de me deitar no peito de alguém, se bem que creio nunca o ter feito até há bem pouco tempo, sentir a batida do coração, saber se acelerava com o meu toque ou não, saber que o coração batia com mais força só porque gostavas de mim. Acho que gostava de o fazer, não na realidade que sempre me assombrou, mas num mundo qualquer em que não sonhava, apenas vivia de uma forma diferente, um mundo de pernas para o ar, sempre com todo o céu colado aos meus pés ( ou seria aos teus eternos pés?), de barriga para o ar, sempre com um peito para me deitar, para me sentir seguro, para te dar segurança.
Não consigo decidir... Quando terminou o "sonho"? Quando deixei de ter o azul debaixo dos meus pés, quando é que senti necessidade de voltar a baixo, quando é que deixei?


Deito-me na relva contigo, minha amiga das horas perdidas, bailarina no céu da minha saudade, conto-te o que sinto, conto-te quem sou por dentro, quem me assola, quem me transcende, quem eu amo e quem me acende (há sempre alguém que me acende!). Falamos horas de pernas para o ar, deitados na sombra irrequieta de uma árvore que nos vai ouvindo tocar as melodias que vamos compondo com o nosso olhar, irrequietas. Mexem-se para nos ouvir melhor, alimentam-se na nossa voz, dos nossos segredos, na nossa intimidade que eu adoro. Oh, minha amiga... Precisava de um abraço teu...
Queria ir, como dantes, para debaixo de um céu cheio de cor, passear pelas ruas apertadas da baixa lisboeta, pelos caminhos percorridos outrora pelos nossos corpos gastos de cansaço. Queria sentar-me contigo, comer o antigo gelado, os velhos sabores, lembras-te? Lembra-te, por favor... Corriamos os dois no mesmo vento, o que nos trazia o sabor do verão a chegar, os planos que montavamos, as alegrias, as nossas gargalhadas, as nossas conversas nos longos almoços ao sol abrasador.
E eu tenho saudades disso. Não sei se se pode perder... Podem perder-se coisas muito grandes?
A culpa pode ser minha, a culpa pode ser tua, mas no fundo a culpa não é nossa e tu sabes disso, eu também sei... Sabemos os dois.

Deitado de barriga para o ar, desapareceu o mundo todo. Lembro-me de todas as vezes que o fiz, é inesquecivel a sensação de poder sobre o azul que nos cobre os pés!
Gosto que se deitem do meu lado, com a cabeça bem perto da minha, sentir apenas o cheiro do cabelo, o cheiro que vai inundar a recordação que está a ser gravada, é tão bom!...

Deitei-me no chão depois de suar, cansado da primeira parte, com ela ao meu lado, os dois, assim deitados no chão de madeira que não brilha, como tantas outras coisas. Não falámos muito, apenas nos deitámos, de barriga para o ar, a sussurrar um pouco, a deixar passar as horas, enquanto ambos o guardámos. Pois, eu sei que o guardas também, já mo disseste, ainda no outro dia "Lembras-te? Nós deitámo-nos lá no chão do ginásio...", tu lembras-te, disso eu sei. E porque é que és especial? Oh... Porque no fundo sabes quem eu sou...

E o mundo desapareceu de novo...
Não falo de ti agora, penso ainda te poder abraçar a voz hoje. Só me ligaste... Não me basta... Nada me basta...
Tenho saudades tuas, meu sonho, tenho saudades tuas...

O mundo desapareceu...

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