Já os nossos corpos mergulharam juntos por entre esta selva de luz roubada, em movimentos perfeitos, em voos alados, numa dança sem fim no centro de um palco sem público. Deixar correr agora cada gota na janela baça... Que desperdicio!

sexta-feira, maio 06, 2005

.Um.

Lembro-me dela como se recordam os sonhos, sempre perto, à distância de um mundo. Lembro-me do sorriso reboscado por debaixo daquele eterno véu cinzento (como o outro lhe chamara), dos olhos brilhantes presos em mim, do sinal sobre o lábio superior, o mesmo sinal que saltitava em cada palavra... O toque da mão dela... Lembro-me tão mal do toque da mão dela, como se o tempo me ofuscasse a memória e, em lapsos constantes, me relembrasse da falta que me faz. Sempre à distância de um mundo... Aquele a que eu não soube nunca chegar.

O tempo sempre correu muito depressa para mim. Quando acordo parece que já passaram umas quantas horas e as que restam não se apresentam suficentes para o que pretendo fazer. Não sou do tipo de deixar para amanhã tudo o que não consigo fazer. Consigo e ponto final. Mas, como ia dizendo, o tempo sempre me pareceu correr muito depressa e, provavelmente devido a isso, pelo menos eu atribuo-lhe as culpas com a maior das certezas, não me vá um dia arrepender e achar que não tomei a devida atenção, não consigo situar o momento exacto em que a encontrei bem dentro de mim. Corria o mês das flores, isso eu sei. Lembro-me das tardes que passei no jardim deitado na relva, sempre de barriga para cima, a pensar na razão da sua intromissão na minha vida. Acho que é de barriga para cima que pensamos melhor. À nossa frente o céu, o universo em crescimento, como o nosso pensamento. Gosto de ficar assim horas, com os pés colados ao azul do céu até que o medo se apodere de mim. É que quando pensamos demais, chegamos sempre a conclusões arrependidas, simplesmente porque existem dentro de nós, sentimo-nos feios porque nos coroem por dentro devagar, sem nunca pensarmos nelas. Mas existem! E eu lembro-me disso, dos pensamentos arrependidos dentro da minha cabeça cambaleante num monte de terra qualquer, como sempre.
Um comentário, bastou um comentário para nos ligarmos com aquela corda da fantasia, como se o futuro estivesse à espreita numa esquina da vida ainda não adivinhada. Somos tão minúsculos face aos desígnios do universo que nem reparamos que o mundo continua a correr lá fora. Ficamos presos, ansiosos pelas palavras atiradas para dentro de nós, a ver se chegam lá ao fundo ou se ficam a flutuar. Quando nos atingem num abismo qualquer sentimo-nos felizes. Quando estamos bem, nem reparamos nelas. Somos realmente parvos! E se ficaram a flutuar esquecemo-nos delas como se as atirassemos para dentro da boca de onde vieram. Silaba a sílaba, na entoação do pensamento. E pensamos bem rápido! Ela pensava rápido.
Não sei quanto tempo ela passou a ler o que eu escrevia naquele meu jornal electrónico. A minha face melancólica agradou-lhe, com certeza. Devia ser como o paraíso no meio do inferno, como sonhar e ser ouvido. Eu sei disso, senti o mesmo quando ela um dia me dedicou um soneto, um entre os tantos que haveriam de vir por aí, lançados ao ar, apontados ao meu peito desarmado e já cansado (de mim, do mundo...). Ah, como me regojizei naquelas palavras ternas. E estão tão longe de mim, meu amor. Será que agora me ouves? Agora, tarde como a noite que chegou até nós... será que me consegues ouvir melhor? Era a tua alma colorida de mil sabores naquelas palavras, o meu corpo respirando ar, novamente. E nem assim te aceitei.
Muitas foram as vezes que me escreveram. “É um dos meus maiores sonhos”. E nunca me senti feliz. Gestos de carinho e paixão abandonados, simplesmente porque não eram retornados, simplesmente porque não os queria meus. Mas os dela não. Queria-os como se quer o vento. Passa por nós e sentimos frio. Ou então acalenta-nos a cara, numa carícia inesperada, tal mão embalando a pele. E passa. Sempre. Foi aí que mais errei. Culpa dos fazedores de sonhos, tenho a certeza. Olharam para ela e vislumbraram a luz dos meus dias cinzentos, o silêncio no meio da multidão e decidiram brincar. Uma pequena brincadeira. E demorou tão pouco até que o medo se instalasse...
As palavras dela iam e vinham como as ondas do mar. Em retorno tinham as minhas frases sempre inacabadas, metáforas elaboradas sempre em torno daquela cara desconhecida. Sim, porque não sabia quem ela era. Apenas palavras, daquelas que se atiram tipo flechas. Atiradas para matar.

terça-feira, maio 03, 2005

Já nem sei onde moras

Já nem sei onde moras. Perdi-te o rasto como quem perde o caminho para casa. Perdi-te [como se te tivesse!].
Passei pela tua casa, aquele prédio mal pintado, enraizado do fervor das avenidas redondantes. As janelas estão com as persianas avertas, deiando entrar a luz que tantas vezes vislumbrei num teu abraço. Ai, como os abraços arrefeceram!... E já lá vai tanto tempo. Mas enfim, as persianas estão abertas. É como se lá estivessem todos, sentados na sala, a ouvir música no teu quarto e com a tua mãe a fazer qualquer coisa no quarto. A da cozinha não conta, estava sempre aberta. Em cada janela um papel branco com um número de telefone. "Arrenda-se" e eu perdi mais uma raiz.
Faz tempo que não sei de ti. Já só recordo a tua voz quando não penso nela. Quanto mais me tento lembrar mais longe ela me parece, como as estrelas: só as podemos ver se não olharmos para elas. Mas estão sempre lá, quer queiramos, quer não. E a tua voz é assim. O timbre delicado, a gargalhada tímida, o eterno acne que teimava em não te passar. Ias adorar saber que também eu já sofri de acne e que de vez em quando ainda me espreita uma borbulha por um poro qualquer. Ias gozar com certeza. Eu brincava contigo. Tu não gostavas, dizias que era mau e que até o teu primo gozava contigo em frente à família toda. Nao tem mal nenhum. Mas não gostavas... E passavas horas diárias a enfiar pelo pele productos novos ou antigos, só para ver se agora funcionavam. Nunca funcionaram. Ou será que algum funcionou?
Ao pensar nestas coisas deixo-me ficar um pouco na "nossa" melancolia dos finais de tarde, das minhas partidas para campeonatos, das noites de cantigas de cocoró-cocó antes de adormecer. Tenho saudades, sabes? Não to diria. Nem o teu número sei. E se sei então fico pior. Quantas vezes te enviei mensagens só para saber se ainda existias e não obtive resposta. Com o tempo fui-me habituando ao pensamento de já não existires no meu ciclo de vida. Estás longe [ou perto, nem sei] e eu estou aqui, parecido ao que era. Mas já não espero por ti! O nosso sol continua comigo todas as noites mas já não o ponho a cantar para mim. Só de vez em quando o oiço, quando alguém cá vem e acha piada e lhe puxa a corda. Faço força para não ouvir. Dizias-me que gostava daquele som porque tinha falta de afecto quando era criança. Agora gosto dele, e disto tenho a certeza, porque foste tu que mo cantaste. Mas cantavas mal! Lembraste? Cantavas mal no banho e eu gozava contigo também!... Terminou.
Agora já nem posso passar de carro e olhar para cima pela janela empoeirada. A única coisa que vou ver vão ser os papeis e as janelas. Já não vejo os móveis por dentro. Costumava imaginar se estava alguma coisa mudada. Deveria estar, estavam sempre a falar de comprar isto e aquilo porque fazia falta. E eu imaginava como estaria. Mas só me consigo recordar de como está para sempre cá dentro. Lembro-me de tudo mas como se fosse apenas uma núvem. Pensamentos leves, não definidos, como se muito longínquos. Mas isso é impossível, sou jovem! Nada é muito longínquo! Mas tu pareces...
Talvez devas partir de mim, realmente. Já não sei onde estás, como falas, como andas [dizem-me que ainda gingas da mesma forma]! Não sei como abraças, como precisas, como sentes e pensas. E pior que tudo... Já nem sei onde moras.