Já os nossos corpos mergulharam juntos por entre esta selva de luz roubada, em movimentos perfeitos, em voos alados, numa dança sem fim no centro de um palco sem público. Deixar correr agora cada gota na janela baça... Que desperdicio!

terça-feira, maio 03, 2005

Já nem sei onde moras

Já nem sei onde moras. Perdi-te o rasto como quem perde o caminho para casa. Perdi-te [como se te tivesse!].
Passei pela tua casa, aquele prédio mal pintado, enraizado do fervor das avenidas redondantes. As janelas estão com as persianas avertas, deiando entrar a luz que tantas vezes vislumbrei num teu abraço. Ai, como os abraços arrefeceram!... E já lá vai tanto tempo. Mas enfim, as persianas estão abertas. É como se lá estivessem todos, sentados na sala, a ouvir música no teu quarto e com a tua mãe a fazer qualquer coisa no quarto. A da cozinha não conta, estava sempre aberta. Em cada janela um papel branco com um número de telefone. "Arrenda-se" e eu perdi mais uma raiz.
Faz tempo que não sei de ti. Já só recordo a tua voz quando não penso nela. Quanto mais me tento lembrar mais longe ela me parece, como as estrelas: só as podemos ver se não olharmos para elas. Mas estão sempre lá, quer queiramos, quer não. E a tua voz é assim. O timbre delicado, a gargalhada tímida, o eterno acne que teimava em não te passar. Ias adorar saber que também eu já sofri de acne e que de vez em quando ainda me espreita uma borbulha por um poro qualquer. Ias gozar com certeza. Eu brincava contigo. Tu não gostavas, dizias que era mau e que até o teu primo gozava contigo em frente à família toda. Nao tem mal nenhum. Mas não gostavas... E passavas horas diárias a enfiar pelo pele productos novos ou antigos, só para ver se agora funcionavam. Nunca funcionaram. Ou será que algum funcionou?
Ao pensar nestas coisas deixo-me ficar um pouco na "nossa" melancolia dos finais de tarde, das minhas partidas para campeonatos, das noites de cantigas de cocoró-cocó antes de adormecer. Tenho saudades, sabes? Não to diria. Nem o teu número sei. E se sei então fico pior. Quantas vezes te enviei mensagens só para saber se ainda existias e não obtive resposta. Com o tempo fui-me habituando ao pensamento de já não existires no meu ciclo de vida. Estás longe [ou perto, nem sei] e eu estou aqui, parecido ao que era. Mas já não espero por ti! O nosso sol continua comigo todas as noites mas já não o ponho a cantar para mim. Só de vez em quando o oiço, quando alguém cá vem e acha piada e lhe puxa a corda. Faço força para não ouvir. Dizias-me que gostava daquele som porque tinha falta de afecto quando era criança. Agora gosto dele, e disto tenho a certeza, porque foste tu que mo cantaste. Mas cantavas mal! Lembraste? Cantavas mal no banho e eu gozava contigo também!... Terminou.
Agora já nem posso passar de carro e olhar para cima pela janela empoeirada. A única coisa que vou ver vão ser os papeis e as janelas. Já não vejo os móveis por dentro. Costumava imaginar se estava alguma coisa mudada. Deveria estar, estavam sempre a falar de comprar isto e aquilo porque fazia falta. E eu imaginava como estaria. Mas só me consigo recordar de como está para sempre cá dentro. Lembro-me de tudo mas como se fosse apenas uma núvem. Pensamentos leves, não definidos, como se muito longínquos. Mas isso é impossível, sou jovem! Nada é muito longínquo! Mas tu pareces...
Talvez devas partir de mim, realmente. Já não sei onde estás, como falas, como andas [dizem-me que ainda gingas da mesma forma]! Não sei como abraças, como precisas, como sentes e pensas. E pior que tudo... Já nem sei onde moras.

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