Já nem sei onde moras. Perdi-te o rasto como quem perde o caminho para casa. Perdi-te [como se te tivesse!].
Passei pela tua casa, aquele prédio mal pintado, enraizado do fervor das avenidas redondantes. As janelas estão com as persianas avertas, deiando entrar a luz que tantas vezes vislumbrei num teu abraço. Ai, como os abraços arrefeceram!... E já lá vai tanto tempo. Mas enfim, as persianas estão abertas. É como se lá estivessem todos, sentados na sala, a ouvir música no teu quarto e com a tua mãe a fazer qualquer coisa no quarto. A da cozinha não conta, estava sempre aberta. Em cada janela um papel branco com um número de telefone. "Arrenda-se" e eu perdi mais uma raiz.
Faz tempo que não sei de ti. Já só recordo a tua voz quando não penso nela. Quanto mais me tento lembrar mais longe ela me parece, como as estrelas: só as podemos ver se não olharmos para elas. Mas estão sempre lá, quer queiramos, quer não. E a tua voz é assim. O timbre delicado, a gargalhada tímida, o eterno acne que teimava em não te passar. Ias adorar saber que também eu já sofri de acne e que de vez em quando ainda me espreita uma borbulha por um poro qualquer. Ias gozar com certeza. Eu brincava contigo. Tu não gostavas, dizias que era mau e que até o teu primo gozava contigo em frente à família toda. Nao tem mal nenhum. Mas não gostavas... E passavas horas diárias a enfiar pelo pele productos novos ou antigos, só para ver se agora funcionavam. Nunca funcionaram. Ou será que algum funcionou?
Ao pensar nestas coisas deixo-me ficar um pouco na "nossa" melancolia dos finais de tarde, das minhas partidas para campeonatos, das noites de cantigas de cocoró-cocó antes de adormecer. Tenho saudades, sabes? Não to diria. Nem o teu número sei. E se sei então fico pior. Quantas vezes te enviei mensagens só para saber se ainda existias e não obtive resposta. Com o tempo fui-me habituando ao pensamento de já não existires no meu ciclo de vida. Estás longe [ou perto, nem sei] e eu estou aqui, parecido ao que era. Mas já não espero por ti! O nosso sol continua comigo todas as noites mas já não o ponho a cantar para mim. Só de vez em quando o oiço, quando alguém cá vem e acha piada e lhe puxa a corda. Faço força para não ouvir. Dizias-me que gostava daquele som porque tinha falta de afecto quando era criança. Agora gosto dele, e disto tenho a certeza, porque foste tu que mo cantaste. Mas cantavas mal! Lembraste? Cantavas mal no banho e eu gozava contigo também!... Terminou.
Agora já nem posso passar de carro e olhar para cima pela janela empoeirada. A única coisa que vou ver vão ser os papeis e as janelas. Já não vejo os móveis por dentro. Costumava imaginar se estava alguma coisa mudada. Deveria estar, estavam sempre a falar de comprar isto e aquilo porque fazia falta. E eu imaginava como estaria. Mas só me consigo recordar de como está para sempre cá dentro. Lembro-me de tudo mas como se fosse apenas uma núvem. Pensamentos leves, não definidos, como se muito longínquos. Mas isso é impossível, sou jovem! Nada é muito longínquo! Mas tu pareces...
Talvez devas partir de mim, realmente. Já não sei onde estás, como falas, como andas [dizem-me que ainda gingas da mesma forma]! Não sei como abraças, como precisas, como sentes e pensas. E pior que tudo... Já nem sei onde moras.
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